A TRAVESSIA

Enquanto atravessávamos o mar naquele barco superficial, os observei por um longo período.

Um tinha mágoa, o outro, revolta.

Eu quis dizer tudo que eu defendia, mas apenas quis. Esse querer se juntou a milhares de outros fatos que ficaram pra trás,os quais também eram responsáveis pelos sentimentos presentes.

Não desejei me apegar ao pretérito de querer.

As palavras que evaporavam de mim não tinham sutileza.

Apertei forte as mãos dele, sem querer arrancar a atenção dos demais naquela travessia fria.

Exposição.

Passado, presente e futuro teorizados numa folha branca, um formigamento invadia a alma, mas de nada adiantaria dizer que era necessário encerrar ciclos, que o passado nos servia apenas como reflexão ou que não perdoar gera uma série de conflitos...

Ele escreveu em letras pequenas e ágeis: "Passado existe quando se esta infeliz" isso desencadeou algumas duvidas...
Se eu não sei o que é felicidade, como posso almejá-la?

Alguém é responsável pela infelicidade do outro?
Essas mesmas dúvidas faziam o barco balançar para um lado e outro naquele mar de cólera, o céu estava feito o passado, nublado.

A que possuía mágoa, mais parecia ódio, uma vontade de exterminar tudo pelo fato de sua existência não permitir o que mais desejava, de rosto anuviado, olhar furtivo e sobrancelhas sempre de encontro com o couro cabeludo transmitindo saber muito, ser perfeita o bastante, isso porque exigia pouco de si; tinha medo de perder o controle, mas na certa tinha imensa vontade de viver como os demais, correr pelos campos verdejantes, escalar montanhas e se jogar de pára-quedas; encher a cara sem
medir as consequências e dançar no meio de um ferro velho uma musica qualquer que o vento lhe soprasse ao ouvido. Mas a cada minuto que os ponteiros avançavam, o envenenamento com os fatos passados era maior levando consigo o que portava a
revolta, este por sua vez tinha tal sentimento alimentado pela convicção de não ter-se feito tão presente no passado, isso lhe arruinava o psicológico; sabia que era um ato de covardia não caminhar, mas assim como a primeira, ainda olhava pra trás porque o inferno são os outros.

Eu gostaria de ter o controle no momento para evitar que as ondas batessem tão bravas, mas apenas demonstrei que estava ali, segurando as mãos dele.

As ondas iam com a certeza de que se ocupar com os minutos passados era um ato tolo e inútil, que poderia a qualquer momento trazer coisas e pessoas que já não fazem mais parte, ou seja, esquecer é uma necessidade.

E quando vinham, traziam não só pra ele, mas pra mim, a convicção de que realmente nada acontece por acaso e o melhor que poderia acontecer no momento em que se esta fazendo uma travessia era receber um impulso pra frente, uma chave pra destrancar o próprio baú de jóias, ou que aquilo pudesse se tornar visível possibilitando que a próxima escolha fosse a melhor.

"Quem quiser nascer tem que destruir um mundo, destruir no sentido de romper com o passado e as tradições já mortas, de desvincular-se do meio excessivamente cômodo e seguro da infância para a consequente dolorosa busca da própria razão de existir. Porque ser é ousar ser." (Herman Hesse)

Ainda no barco falei baixinho no ouvido dele: "isso foi um presente, presente. Um mundo destruído, uma ave nascida, o anelado porto”.

Ana Mais do Que Nunca

Comentários

Anônimo disse…
Linda ...linda ....

saudades de te ler...

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