LEMBRANÇA

Eu me lembro dos seus olhos negros que mais pareciam jabuticabas, arregalados, vivos, festivos.
A voz alta, acelerada, pedindo, rindo, cantando uma canção de um menino que havia perdido as mãos porque apanhou do pai por ter arranhado seu carro, era algo assim.
Sua pele queimada pelo sol refletia as marcas do sacrifício que fazia para deixar tudo em ordem pra quem mais amava.
Suas mão calejadas e suas unhas encardidas pelo trabalho pesado, mas nem se importava, era por amor.
Uma coisa que lembro bem é de suas passadas velozes e do barulho que as Havaianas faziam quando iam de encontro ao calcanhar, era algo tão desesperador, como se fosse perder o último trem, meio exagerado como o tom de voz quando tinha pressa repetindo 3 a 4 vezes a mesma palavra..." Vamos, vamos, vamos..." Mas esperava sempre.
O que era partir o birro? Você perguntava: Vamos partir o birro?
Eu meio sem saber, respondia que sim com a cabeça.
Lembro o barulho das moedas, umas de encontro às outras no bolso daquela sua camisa xadrez, a preferida.
Lembro dos seus dons em cálculos, da rapidez com que fazia as coisas ficarem perfeitas.
Da desimportância que dava às opiniões alheias, gostassem ou não, você estava lá, demonstrando seu bom humor.
Das viagens, das águas geladas daquela represa que você desassossegado atravessava a nado de um lado para outro, enquanto eu espiava da margem, com as canelas finas cobertas pela água barrenta, turva.
Dos grãos de milho que jogávamos às aves, dos pés de limão, mexerica, amora, ameixa, laranja e banana.
Das balsas, dos itinerários no carrinho de mão pra cima e para baixo, ora transportando trabalho, ora transportando vida.
Dos seus dons, dos seus exemplos e ensinamentos, da sua vida inteira e do amor/dor que jamais achou ser capaz de compreender e que jamais alguém poderia lhe explicar.
Dos peixes nadando naquela folha que você me entregou àquela tarde em que por trás de mim ficaram as grades e o grande portão azul marinho.
Das correntes, cordas e fios que os braços já não tinham mais força para envolver no pescoço e apertar.
Da sua vontade de partir nos últimos dias que já eram considerados morte.
Eu me lembro dos pedidos amarrados junto às suas pernas nas grades da cama, das palavras, das simples promessas cortantes que não houve tempo para cumprir, eu sei não foi culpa de ninguém, eu sei...
Lembro do desgosto nos seus olhos, do fracasso em tuas entranhas, e, mesmo que tivesse vencido, era assim que sentia.
E daquela manhã, a derradeira; que pela ultima vez sentiu a quentura do teu corpo.
Daqueles olhos que atônitos presenciavam a tua cor roxa, de dedos entrelaçados, envolto em brancas flores.
É tão nítido, é tão intensa a lembrança que ainda sinto a tua presença.
E sim! Vamos partir o birro.

Ana Mais do Que Nunca.

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