SOBRE URUBUS E BEIJA-FLORES

Estava me sentindo tão triste na manhã em que voltei a trabalhar e de repente me veio um presente às mãos, um livrinho pequeno e precioso, recheadinhos de crônicas do Rubem Alves, sem tirar o fato de estava tão sensível que chorei ao lê-lo, lembrei-me então que poderia espalhar a luz que esta crônica me trouxe, vontade de epandir, fantástico!


*Eu estava terminando a leitura de um artigo científico. De vez em quando é bom ler ciência. A gente fica mais sabido. Tudo explicadinho. No final das contas, tudo se deve a esse gigantesco infinitamente pequeno disquete que existe dentro das células do corpo chamado DNA. Nele está gravado o nosso destino. Antes de existir, eu já estava “programado” inteiro: a cor dos meus olhos, as linhas do meu rosto, a minha altura, os cabelos brancos precoces, o seu adeus que nada consegue evitar, o sexo. Dizem alguns que lá está até um relógio que marca quantos anos eu vou viver. E é implacável: o que a natureza põe, não há homem que disponha.

Programa mais complicado que o DNA não existe. Tudo tem de acontecer direitinho, na ordem certa. E quase sempre acontece. Quase sempre... Vez por outra uma coisinha não acontece segundo o programado. E o resultado é uma coisa diferente. Assim aparecem os daltônicos, que não vêem as cores do jeito como a maioria vê. Ou o canhoto, que tem de tocar violão ao contrário. De vez em quando, uma criança com síndrome de Down. E quem não me garante que Mozart não foi também um equívoco do DNA? Pelo que sei, a receita não se repetiu até hoje...

O artigo prosseguia para mostrar que é assim que, vez por outra, aparecem pessoas com uma sensibilidade sexual diferente: os homossexuais. Tudo aconteceu lá no DNA: um relezinho que funcionou de maneira não programada. Primeiro, caiu o relê que determina o sexo, se vai ser homem ou mulher. Depois, o relê que determina os caracteres secundários, que fazem a “imagem” do homem e da mulher. Por fim, o relê que determina o objeto que vai disparar as reações químicas e hidráulicas necessárias para o ato sexual. Esse objeto é uma imagem. Nos heterossexuais, é a imagem de uma mulher. Nas mulheres heterossexuais, é a imagem de um homem que faz o seu corpo estremecer.

Acontece, entretanto, que por vezes esse último relê não funciona e a pessoa fica ligada à imagem do seu próprio sexo. A imagem que vai como­ver seu corpo é uma imagem semelhante à sua. E isso que é ser homossexual. O homossexualismo é uma condição estética.

Tudo por obra do DNA. Nada tem a ver com educação, com a mãe ou com o pai. Ninguém é culpado, pois culpa só pode existir quando existe uma escolha. Mas ninguém escolheu. Foi o DNA que fez. E nem pode ser pecado. Pois pecado só existe onde existe culpa. E nem pode ser curado, pois o que a natureza fez não pode ser desfeito.

E foi nesse momento eu estava meditando sobre essas coisas que fogem à compreensão dos homens, como a origem do DNA, o processo pelo qual ele foi estabelecido, se por acidente, se por tentativa e erro, se por obra de algum programador invisível — que uma coisa estranha aconteceu: um barulho como eu nunca ouvira, no meu jardim. Tirei os olhos do artigo, olhei através do vidro da janela e o que vi — inacreditável — um urubu, sim um urubu, batendo furiosamente as asas como s fosse um beija-flor, diante de uma flor de alamanda sugando o melzinho. Achei que estava tendo alucinação, mas não. Era verdade. O urubu, ao ver meu espanto, pousou no galho de uma árvore de sândalo e começou a se explicar, do jeito mesmo que acontecia.

Sofro muito. Nasci diferente. Urubu, todo mundo sabe, gosta de carniça. Basta que se anuncie carcaça de algum cavalo morto, os olhos dos urubu ficam brilhando, a saliva escorre pelos cantos do bicos, a língua fica de fora — e lá vão eles churrasquear. Urubu acha carniça coisa fina, manjar divino! Eles não a trocariam por uma flor de alamanda por nada nesse mundo!

Mas eu nasci diferente. Meus pais, coitado morreram de vergonha quando ficaram sabendo que eu, às escondidas, sugava o mel das flores. Compreensível. O sonho de todo pai é ter um filho normal, isto é, igual a todos. Urubu normal gosta de carniça. Eu não gostava. Era anormal. Fiquei sendo objeto de zombaria. Na escola, logo descobriram minhas preferências alimentares. E impossível esconder. Se todo o mundo está comendo carniça e você não come, que explicação você pode dar?

Aí meus pais começaram a sofrer, pensando que eu era assim por causa de alguma coisa errada que tinham feito na minha educação.

Me mandaram para o padre. Severo, ele abriu um livro sagrado e disse que Deus, o Grande Urubu, estabelecera que carniça é o manjar divino. Urubu, por natureza e por vontade divina, tem de comer carniça. Chupar mel é contra a natureza. Urubu que chupa mel de flor está em pecado mortal. Ter­minou dizendo que eu iria para o inferno se não mudasse meus hábitos alimentares. E me deu, como penitência, participar de cinco churrascos.

Saí de lá me sentindo o mais miserável dos pecadores. Mas o medo não foi capaz de mudar o meu amor pelas flores. Não cumpri a penitência. Meus pais me mandaram, então, para um psicanalista que cobrava R$120,00 por sessão. Todos os sacrifícios são válidos para fazer o filho ficar normal. A análise durou vários anos. Ao final, fui informado que eu gostava de mel porque odiava meu pai, a quem eu queria matar, para ficar sozinho com a minha mãe. Aí, além de pecador, passei a sofrer a maldição de Édipo. Continuei a gostar do mel da flores. Por isso estou aqui, no seu jardim”.

Houve um momento de silêncio e eu vi o que nunca havia visto: um urubu chorando. Notei que sua lágrimas não eram diferentes das minhas. Aí ele continuou:

Gosto das flores. Não quero gostar de carniça. Não quero ficar igual aos outros. Só tenho um desejo: gostaria de não ter vergonha, gostaria que não zombassem de mim, chamando-me de ‘beija flor’, eu não sou beija-flor. Sou um urubu. Eu gostaria de ter amigos...

O que me dói não é a minha preferência alimentar, pois não fui eu quem me fiz assim. O que me dói é minha solidão. Gosto de flores por culpa do DNA. Mas a minha solidão é por culpa dos outros urubus, que poderiam ser meus amigos”. Ditas essas palavras, ele se despediu e voou par uma alamanda do jardim vizinho.

E eu fiquei a pensar que o mundo seria mais feliz se todos pudessem se alimentar do que gostam, sem ter de se esconder ou se explicar. Afinal ninguém é culpado por aquilo que a natureza faz ou deixou de fazer.

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